Entre, o mundo interior é teu!

Neste meu mundo, dentro deste coração, você apreciará reflexões sobre a obra do Impecável Carpinteiro. Ele é aquele que não cobra pelos serviços que presta; na verdade, ele pagou ao mundo o direito de aliviar o peso do madeiro sobre os ombros de seus amigos, os viajantes da existência. Meu blog é dedicado, consagrado, a Jesus, se é que terei a honra e a competência de construir algo respeitoso ao Eterno, ao que foi morto, e agora vive. Vive e intercede por gente simples; gente que procura entender corações e mentes de outras gentes simples, modestas, espontâneas.

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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

(2) O Camelô dos trens da Central do Brasil

27/12/2010. A noite ia se adensando; logo encostaríamos na estação ferroviária de Nilópolis. Parte daquela multidão de cansados escoaria do trem para suas sendas - comprar o pão para o café da madrugada, assistir à novela Antônio Maria na TV em preto e branco, dormir e voltar aos trens do dia seguinte. Eu prosseguiria mais um pouco -- passaria por Edson Passos, Mesquita, Juscelino, Nova Iguaçu, e então, Comendador Soares. Será que meu pai estaria no mesmo trem que eu? Ele desconhecia minha atividade clandestina. E se nos encontrássemos por acaso? Nem a ele nem a minha mãe eu havia pedido permissão para vender picolé no trem. O trem era lugar para camelôs de verdade, para meninos sem lar, sem futuro; meninos sem esperança... Contudo, haveria esperança para mim? As casinhas simples, apertadas, mal acabadas, dos operários, me abatiam o pensamento quando as avistava das janelas do trem. Um grão de fé em minha mente ainda levaria mais de uma década para amadurecer. O que o meu pai me instruiria, ou como reagiria, caso viesse a conhecer as reflexões de um de seus filhos do meio? Quanto custaria a libertação da timidez de uma alma? Quantas estações na vida são necessárias até cedermos à sabedoria de um pai amoroso?

28/12/2010. Prosperidade sempre rondou meus desejos e energias de viver. Pelas janelas do trem, iam ficando para trás as casinhas humildes dos operários, meus clientes de picolé, após mais um dia de camelô nos trens da Central do Brasil. Eram imagens carimbadas de dó e de lamento quanto às limitações sociais daqueles trabalhadores -- gente como meu pai. Considerava-os abandonados numa sociedade marcada pelo desdém e por um salve-se-quem-puder muito desumanos. Não haveria autoridade para proporcionar-lhes acesso a uma vida de qualidade e paz? Ao sentimento de compaixão, por aqueles meus conterrâneos, se sobrepunha o escudo da limitação psicológica -- lutar por minha própria prosperidade e, um dia, poder ajudar os de casa. Lembrei-me, então, do triste episódio das muitas varizes na perna de minha mãe quando ela e eu retornávamos da feira livre em Morro Agudo, do lado chique do bairro. Em cada mão, carregávamos uma sacola de pano cru, que continha a alça fixada num pedaço de metal. Vínhamos, então, retornando a pé pela lateral da rua de terra batida, com precaução para não sermos atropelados pelas bicicletas que predominavam como meio de transporte pessoal e de carga - e não carros como hoje. No que minha mãe evitou uma daquelas bicicletas no contra fluxo, a extremidade da fita de aço de sua sacola pinçou-lhe uma ramificação de varizes na batata da perna. Como esqueceria o sangue a escorrer pela perna de dona Rosa? Da angústia e inação de um filho menino, nessas horas, um clamor relâmpago sobe de si aos céus: ``-- Quem poderá nos socorrer?'' - pensei em meio ao desespero em meio a dor. Eu teria de testemunhar muitas outras dores e sangues de inocentes até ser capaz de compreender que nosso socorro vem do Alto.

29/12/2010. O trem encostara na estação de Nilópolis. A caixinha de picolé descera para ocupar o espaço antes preenchido pelo senhor humilde e generoso, que a apoiou ali sobre minha cabeça desde a estação de Engenho de Dentro. Os últimos picolés, já um pouco amolecidos, ainda seriam vendidos até a estação de meu bairro, pois a caixa de isopor não sofrera dano, no aperto das pessoas confinadas comigo naquele vagão. Quando a porta de um trem superlotado se abre, não há muito tempo para o desembarque, nem há ocasião para palavras de despedida entre os que ficam e os que se vão. Uma parte da massa humana escoa para seus destinos por meio daquela estação, e os que devem prosseguir a viagem são obrigados a desobstruir-lhes o caminho; caso contrário, descem ali mesmo, por empurrão. Por um relance apenas, o olhar daquele senhor cruzou o meu. O poder de um olhar generoso, sobre o rosto de uma criança assistida na dificuldade, extrai dela uma profunda nota de agradecimento: ``-- Valeu!'' - disse-lhe eu um Muito Obrigado em linguagem de camelô. Em retribuição, ele, já de costas, e confundindo-se entre os desembarcados, expressou-me o polegar característico de Ok! Aqueles segundos me ensinaram que a gente só recebe um Ok de generosidade do Alto se dissermos um Muito Obrigado de humildade daqui de Baixo.

30/12/2010. Naqueles dias, um parque de diversão se instalou no lado chique de Morro Agudo; na rua principal, a uma ou duas quadras da igreja matriz, para quem vai em direção à via Dutra. Eles ocuparam um grande terreno de esquina, à direita dessa rua. A feira livre, aos domingos, era transversal a essa rua, e fazia esquina com o terreno do parque de diversão. Foi indo à feira com a minha mãe, pelas manhãs de domingo, que eu conheci o primeiro parque de diversão de minha infância. Era um parque simples, mas tinha um mundo de coisas fantásticas. Tinha Tiro-ao-Alvo, tinha carros Bate-bate, e tinha uma Roda Gigante cheia de cadeiras igualmente espaçadas em todo a sua circunferência. Enquanto minha mãe parava nas bancas para escolher verduras, eu ficava pensando como seria ver o bairro lá do topo da roda gigante. Era uma coisa que dava certo medo, mas um medo razoável; só exigiria um pouco de coragem de mim. Não durou nada e eu separei um dinheiro da venda dos picolés para gastar no parque de diversão num domingo daqueles. Entrei na fila da bilheteria: “Em qual brinquedo você vai?” - perguntou-me o bilheteiro, um homem negro, com cara de gente boa. “Quero a roda gigante.” - respondi destemido. A visão que tive lá de cima não só valeu a pena como me despertou para ver as coisas cada vez mais lá do Alto. E ainda está valendo a pena.

31/12/2010. No caminho de volta para casa, naquele domingo à noite, após umas horas de sonho no parque de diversão, viajei em pensamento há uns cinco anos atrás, quando ainda morava na Rua Lili -- a rua com a casa de minhas primeiras memórias de infância. Dali ficaram registrados coisas muito boas; coisas que meus pais fizeram para toda a família. Minha mãe e meu pai oscilavam em torno de 35 anos de idade. Ele trabalhava no Jornal o Globo. Ela cuidava da casa e da gente esplendidamente. Eu adorava as sardinhas fritas, o feijão preto e arroz branquinho da minha mãe. Aos domingos íamos à igreja Assembléia de Deus do pastor Teotônio -- cuja família morava no quintal que fazia fundos com o nosso. A casa da Rua Lili tinha um telhado cujas águas corriam para o centro do telhado. Visto de lado, o telhado lembrava uma letra V bem aberta - as pessoas diziam que era telhado tipo Brasília, bem moderna. Era uma casa simples, e toda pintada de rosa - o nome de minha mãe. Tinha três pequenos quartos; uma sala com sofá; uma sala com mesa de refeições; uma varanda grande nos fundos onde tinha uma mesa enorme com dois bancos. Minha mãe colocava as roupas passadas sobre aquela mesa. O ferro de passar era a carvão vegetal. E eu aprendi a ler “Eva viu a uva” naquela mesa dos fundos. Na frente da casa tinha uma varandinha com persianas horizontais. O ônibus passava bem em frente da casa e fazia um poeirão na rua de terra batida. À noite eu me deitava no sofá e assistia às sombras que os faróis dos ônibus projetavam sobre o sofá da sala da frente. Eu não ligava para a poeira. A poeira cheirava bom, especialmente quando chovia! Naqueles anos eu me sentia bastante feliz porque minha mãe se esforçava para manter tudo limpinho e organizado. Não tínhamos luz elétrica; a geladeira funcionava à querosene, eu tomava banho pelado numa bacia de água aquecida pelo sol no fundo do quintal. A vida era maravilhosa! ... Até que meu pai começou a fazer coisas bem erradas! A primeira coisa ruim, que eu soube que ele fez, foi brigar com pessoas da igreja que gostavam da gente.

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(1) O Camelô dos trens da Central do Brasil

22/12/2010. Do interior dos trens da Central do Brasil, Baixada Fluminense, década de 1970, com minha caixa de picolés, que vendia a 100 cruzeiros novos, observava o mundo correndo lá fora. Logo aprenderia que também teria de correr com a minha vida.


23/12/2010. Pensei que minhas vendas bateriam um recorde; tomei o trem que saíra lotado da Central para os bairros dormitórios. Logo percebi que sofreria aperto pela má estratégia. Pendurada na altura do abdômen, minha caixinha de picolé não suportaria a pressão de gente espremida no interior do vagão. Nos primeiros krec-krec do isopor, um salvador... Um homem altíssimo, de uns 90 centímetros a mais do que eu, levantaria minha caixinha para o único espaço disponível; logo acima de minha cabeça. Ali, e só ali havia espaço para enchimento - acima de minha cabeça.

24/12/2010. Naquele aperto, como se fôssemos os próprios picolés estocados de pé na caixinha de isopor, meu corpo só voltaria a se movimentar quando o trem encostasse na próxima estação suburbana. Nilópolis estaria logo ali; a uns 5 minutos de pressão humana. Então eu respiraria com mais liberdade, e até expressaria algum alívio. Afinal, o faturamento do dia estaria assegurado, minha caixa estivera a salvo, equilibrada sobre minha cabeça, e amparada pela mão daquele senhor humilde, um homem moreno escuro, de pele ressecada, de cabelo crespo, com duas entradas de calvície já se acentuando; um tipo pedreiro como o meu pai em breve se tornaria. Um pedreiro acostumado a assentar tijolos assentou sobre minha cabeça as minhas esperanças do dia... Será que meu pai também estaria naquele trem? Ele trabalhava de impressor em uma grande oficina barulhenta, porém muito famosa. Meu pai era operador de máquinas do jornal O Globo.

25/12/2010 - Com os movimentos de pernas e braços paralisados, por pressões de todos os lados, no confinamento daquela massa humana em um vagão de trem, a um menino abaixo de um metro de estatura só lhe resta leves movimentos dos olhos; a avistar nada, senão as imagens mentais de uma tragédia na estação Comendador Soares, pertinho de minha casa em Morro Agudo, no enorme município dormitório de Nova Iguaçu. Aos sete anos de idade, vi pedaços dos muitos corpos esparramados entre trilhos, pedras e dormentes. No mais, trapos humanos ensangüentados, centenas de pessoas silenciadas entre a dor e o alívio de terem sobrevivido aos estilhaços e ferragens cortantes. Do terror da dor e do aperto humanos aprendi que o silêncio proclama mensagens de longa sabedoria. Olho atrás e entendo, a morte tinha de ser superada. A dor não condiz com a vida.

26/12/2010. O cortante atrito das rodas de aço contra os trilhos da estrada de ferro remetera-me daquelas cenas de morte para memórias de infantil felicidade. Minha mãe, uma mulher totalmente dedicada aos seus sete filhos biológicos, a uma filha adotiva, e a uma fé simples e temente a Deus, ainda tem uma irmã que vive em Barão de Juparaná, município de Valença, no sul do estado do Rio. Recordo-me de uma ou duas viagens gloriosas numa Maria-Fumaça que saía no escuro da madrugada de Japeri e alcançava aquela cidadezinha do tempo dos barões e escravos do café. Se a vida no céu for somente um prolongamento eterno daquelas emoções das viagens à casa da tia Ilda, terá valido muito a pena ter sobrevivido à disciplina do caminho estreito na fé de minha mãe.

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